Identifico-me demais com Jean
Michel Basquiat. Talvez pelo fato do auge de sua produção ser contemporâneo de
minha infância e adolescência. Ou ainda, por seu habitat de criação, Nova York,
ser uma megalópole globalizada tal qual Sampa, onde nasci, cresci e vivo. Tempo
e espaço nos aproximam, embora os lugares sejam distantes. Mas, é óbvio, sem a reflexão
ética e a explosão estética que seu trabalho propõe não seria possível falar
dessa identidade.
O grafite parece-me ser de longe
a linguagem que melhor expressa a angústia urbana , seja para denunciar a vida
em sua plenitude, seja para nos mostrar o quanto ela está ameaçada. Essa função
ética é essencial em tempos nos quais lutamos por nos identificar em meio à
tantas e complexas identidades. Trata-se de uma forma de linguagem de rua,
pública, desnuda, que se opõe radicalmente à apropriação privada dos lugares da
cidade. Assim, é uma ética revolucionária diante da vida mercantilizada e da
servidão consentida, embora tal linguagem só seja possível no contexto tempo/espaço
pós-industrial. Exemplo contundente da dialética da modernidade da qual Marshal
Berman nos fala.
As cabeças sem perspectivas, as
ranhuras primais, o fundo poluído, a sobreposição de figuras, o grito mudo estampado
nos desenhos, são o conteúdo do mundo urbano de Basquiat e nosso. É a estética
do nosso ambiente que se vê diante dos quadros realizados pelo negro pintor neoexpressionista
do Brooklyn. É o universo urbano agnóstico e simbólico que se expressa nas pinceladas
fortes, desproporcionais e abandonadas das telas de Basquiat. Sobre caracteres
caoticamente despejados, a paisagem choca e suaviza o olhar e, após a espantada
contemplação, coloca o observador no centro da imagem e do imagético.
A ferocidade demasiadamente
humana da arte desse artista, descendente de Haitianos e Porto-riquenhos, só é
compreensível no contexto da velocidade das transformações que nos acompanham,
naquilo que Milton Santos denominou de espaço técnico- científico e que a todos
envolve. Um meio técnico e científico em que tudo se torna demasiadamente
volátil e passageiro. A obra de Basquiat só é inteligível no contexto da
espacialidade globalizada, na qual Haiti ou Porto Rico, assim como Nova York e
São Paulo fazem parte da mesma realidade. Miséria e riqueza, centro e periferia,
ateísmo e religiosidade, entre outros polos da dialética humana compõem a
paisagem da modernidade mundializada. Esses
elementos também compõem a síntese de Basquiat.
Falecido precocemente, aos 28
anos de idade, Jean Michel Basquiat é um dos heróis que morreram por overdose dos
quais nos fala outro artista brasileiro, também contemporâneo do pintor. De
fato, a década de 80, não foi tão perdida como querem fazer crer os economistas
e, como de resto o futuro confirmou, muito menos quando se deu o fim da
história.
Por fim, cabe dizer que desde os
gregos é conhecida a simbiose entre ética e estética. A fusão da forma e conteúdo nas artes plásticas
foi consequência do devir histórico. A espacialidade que o homem desenvolveu
remete à geografia a tarefa inadiável de colaborar, nessas quadras da odisseia humana,
com a compreensão daquilo que, conforme Nietzsche “existe para que a realidade
não nos destrua”: a arte.