quarta-feira, 5 de março de 2014

NOTAS SOBRE A GEOGRAFIA DE BASQUIAT

                                                         

 
Identifico-me demais com Jean Michel Basquiat. Talvez pelo fato do auge de sua produção ser contemporâneo de minha infância e adolescência. Ou ainda, por seu habitat de criação, Nova York, ser uma megalópole globalizada tal qual Sampa, onde nasci, cresci e vivo. Tempo e espaço nos aproximam, embora os lugares sejam distantes. Mas, é óbvio, sem a reflexão ética e a explosão estética que seu trabalho propõe não seria possível falar dessa identidade.

O grafite parece-me ser de longe a linguagem que melhor expressa a angústia urbana , seja para denunciar a vida em sua plenitude, seja para nos mostrar o quanto ela está ameaçada. Essa função ética é essencial em tempos nos quais lutamos por nos identificar em meio à tantas e complexas identidades. Trata-se de uma forma de linguagem de rua, pública, desnuda, que se opõe radicalmente à apropriação privada dos lugares da cidade. Assim, é uma ética revolucionária diante da vida mercantilizada e da servidão consentida, embora tal linguagem só seja possível no contexto tempo/espaço pós-industrial. Exemplo contundente da dialética da modernidade da qual Marshal Berman nos fala.

As cabeças sem perspectivas, as ranhuras primais, o fundo poluído, a sobreposição de figuras, o grito mudo estampado nos desenhos, são o conteúdo do mundo urbano de Basquiat e nosso. É a estética do nosso ambiente que se vê diante dos quadros realizados pelo negro pintor neoexpressionista do Brooklyn. É o universo urbano agnóstico e simbólico que se expressa nas pinceladas fortes, desproporcionais e abandonadas das telas de Basquiat. Sobre caracteres caoticamente despejados, a paisagem choca e suaviza o olhar e, após a espantada contemplação, coloca o observador no centro da imagem e do imagético.

A ferocidade demasiadamente humana da arte desse artista, descendente de Haitianos e Porto-riquenhos, só é compreensível no contexto da velocidade das transformações que nos acompanham, naquilo que Milton Santos denominou de espaço técnico- científico e que a todos envolve. Um meio técnico e científico em que tudo se torna demasiadamente volátil e passageiro. A obra de Basquiat só é inteligível no contexto da espacialidade globalizada, na qual Haiti ou Porto Rico, assim como Nova York e São Paulo fazem parte da mesma realidade. Miséria e riqueza, centro e periferia, ateísmo e religiosidade, entre outros polos da dialética humana compõem a paisagem da modernidade mundializada.  Esses elementos também compõem a síntese de Basquiat.

Falecido precocemente, aos 28 anos de idade, Jean Michel Basquiat é um dos heróis que morreram por overdose dos quais nos fala outro artista brasileiro, também contemporâneo do pintor. De fato, a década de 80, não foi tão perdida como querem fazer crer os economistas e, como de resto o futuro confirmou, muito menos quando se deu o fim da história.

Por fim, cabe dizer que desde os gregos é conhecida a simbiose entre ética e estética.  A fusão da forma e conteúdo nas artes plásticas foi consequência do devir histórico. A espacialidade que o homem desenvolveu remete à geografia a tarefa inadiável de colaborar, nessas quadras da odisseia humana, com a compreensão daquilo que, conforme Nietzsche “existe para que a realidade não nos destrua”: a arte.

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